⠀⠀⠀⠀⠀na calçada
⠀⠀⠀⠀⠀próximo
⠀⠀⠀⠀⠀de um abajur chinês
⠀⠀⠀⠀⠀de um ioiô de marca de refrigerante que não existe
mais
⠀⠀⠀⠀⠀de um bilboquê
⠀⠀⠀⠀⠀de um radinho de pilha
⠀⠀⠀⠀⠀e de diversos exemplares amarelados de fotonovelas
italianas
⠀⠀⠀⠀⠀tem um mendigo deitado
⠀⠀⠀⠀⠀à mostra
⠀⠀⠀⠀⠀data de (informação imprevista)
⠀⠀⠀⠀⠀valor da peça (a combinar com o expositor)
O afiador de facas
Domingo é dia de ouvir o apito do afiador de facas, arrastando sua bicicleta pelas ruas vazias.
Uma senhora apareceu para afiar o alicate de
cutícula.
Nunca tinha visto ele atender alguém.
Antes, em outros domingos, tinha o jornaleiro e uns carros de som que vendiam sorvete caseiro, sacolé, produtos de limpeza, ovos, frutas, verduras e legumes.
Mas esses não se ouvem mais.
Só restou o afiador de facas.
Com o mesmo apito.
Parece um piado.
E é até meio triste.
Os cães são fiéis até aos homens maus
Deixa esses versos envelhecerem
Sem companhia
Deixa assistirem mais uma guerra
E mais quantas for preciso
Até que esses versos
Tenham um sentido
Maior que essa destruição
Maior que esse novo mundo
Que renasce
Da guerra
Que esses versos
Estão cansados
De ver
Deixe esses versos
Nas mãos dos soldados derrotados
Bata em retirada
E assista a tudo
De algum lugar
Ao longe
De algum lugar
Onde os animais selvagens fiquem a sós
Com seus pensamentos
De paz
A mulher louca que anda com uma boneca pela rua
Seus olhos eram dois mundos sem cor
Sei peito guardava uma cidade noturna
Turva
Mesmo longe
Era possível ouvir seu desassossego
Já me disseram que foi puta
Artista de cabaré
Cartomante
Vendedora de flores
Eu estive nela
Abracei sua solidão
Como uma criança que não tem pra onde ir
Como uma criança que sabe
Que o tempo já não importa
Poema das crianças
O bebê de um ano e onze meses morto a pauladas pelo pai,
As dez crianças mortas pelo vigia que ateou fogo na creche,
O menino assassinado pela polícia dentro casa com setenta e um tiros disparados a esmo,
O garoto estrangulado pela mãe,
O garoto empalado pelo homem desconhecido,
A menina alvejada pela facção rival do pai,
A recém-nascida morta pela mãe, guardada em uma sacola plástica e descartada no container de lixo orgânico,
O garoto que vendia rapadura na rua, morto com a promessa de que teria todos doces comprados se fosse a casa do assassino,
O menino que recebeu a injeção letal a mando do pai,
O menino arrastado por sete quilômetros do lado de fora de um carro por assaltantes,
A menina atirada da janela do sexto andar pelo pai e a madrasta,
O bebê de duas semanas que foi esquartejado e teve partes do corpo comida por cães,
O menino assassinado com dois tiros no rosto antes do pedido de resgate,
O menino com síndrome de down morto com água fervente pela mãe,
A menina estuprada e que teve o corpo sem vida jogado no telhado pelo vizinho,
As duas crianças mortas em um ritual e que até hoje não foram identificadas,
O menino assassinado com uma facada no pescoço pelo pai que tinha ciúmes da mãe,
O pequeno sírio que morreu afogado fugindo guerra e foi encontrado de bruços na beira da praia,
O bebê de noves meses morto de fome e desidratação pela mãe que o deixou por sete dias em um carrinho e saiu de casa,
E o feto de cinco meses abortado de uma menina de 10 anos que era estuprada pelo tio
Não se tornaram pessoas más,
Porque a sociedade
Não os corrompeu.
Lucas Barroso, natural de Porto Alegre, é autor de Virose (romance, 2013), Um Silêncio Avassalador (contos, 2016) e Um Gato que se Chamava Rex (infantil, 2018) e O Tempo Já Não Importa (poesia, 2020). Seu e-mail para contato é: lsbarroso84@gmail.com